E que tudo o que acontecia vinha para mudar a pessoa que a gente estava acostumada a ser

by - 08:08




Era canhota e dormia com pés na cabeceira da cama. Não é de fato um grande fato, é só uma dessas informações que não são imprescindíveis, mas que algumas pessoas gostam de ficar sabendo. Dois dias atrás resolveu cobrir as paredes do quarto com papel, e escolheu um de mosaicos anises que faziam com que ela pensasse em porque os ingleses gostam de chá, uma água amarelada sem gosto nem cor nem cheiro de nada nem coisa nenhuma. Ou em porque às vezes se via pensando em tantas coisas inúteis que não acrescentam nem retiram e tudo fica por assim dizer, neutro do que jeito que estava. Não gostava do neutro do jeito que estava porque desde pequena decidiu que a vida era grandiosa e gloriosa como o fogo quando azul, e que tudo o que acontecia vinha para mudar a pessoa que a gente estava acostumada a ser. Por isso não aceitava, não podia aceitar que a própria cabeça fosse tão dona de si e agisse e pensasse sem sequer consultar a dona que retinha a alma. E é alma que guarda as valiosidades da pessoa.



Portanto não aceitava e quando se pegava pensando nesses nadas preenchidos buscava preenchê-los de verdade. E começava a sentir falta de um amor para ocupar a alma que retém a cabeça e os pensamentos, quem sabe também o coração, aí estaria cheia, abarrotada de alguém que a acrescentaria e retiraria, e ela não precisaria se preocupar com mais nada. Uma vez quase amou mesmo, mas foi uma época confusa em que amor parecia ser uma brincadeira de adultos, que era de adultos justamente porque só eles tinham a delicadeza que era saber brincar de amor. E não ensinavam aos pequenos não por maldade, mas porque não podiam realmente. Amor é uma brincadeira que só se sabe quando se cresce, depois que se passa por tudo o que se precisava viver até estar preparado.

Nessa vida estranha há coisas que só podemos fazer depois de prontos e ninguém sabe quando é isso, nem com certeza quais coisas são essas. A gente só sabe que não se tem certeza de muita coisa, nem se pode, é tudo tão leve e efêmero como uma teia de aranha feita do lado de fora do telhado, pedaço grudado nas vigas e telhas, pedaço preso na parede onde bate um vento toda tarde que parece ter o propósito de desmanchar, para que possa ser feito novamente. São as fases os ciclos os loopings. O subir e descer da montanha russa – que nunca andei – e que são tão inevitáveis que chego a doer de ódio por todas essas coisas serem tão previsíveis e sempre acontecerem iguais, em repetições. E outra coisa que não dá para se entender: as pessoas sentem diferente o que é sempre igual. E ela não entendia mesmo. Bicho humano é cheio de frescuras e frescores, e de repente, parecia muito estranho ter nascido gente que pensa essas coisas que não são imprescindíveis, mas que algumas pessoas gostam de ficar sabendo. 


Colou o papel de mosaicos anises por cima da tinta e acabou com dois dedos grudados e alguns fiapos de papel pregados nas palmas das mãos.

You May Also Like

1 comentários

  1. Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste Teste

    ResponderExcluir